20.01.15 | Artigos
Crítica à Tese da possibilidade do conhecimento oficiosos de 'Questões de Ordem Pública' pelo STJ
UMA PROPOSTA DE REFLEXÃO SOBRE O PAPEL DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
Publicado na Revista de Processo, n. 202, Dez. 2011. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.Igor RaatzFrederico Leonel Nascimento e Silva
Resumo: O presente ensaio constitui uma proposta de reflexão sobre a função dos Tribunais Superiores, notadamente do Superior Tribunal de Justiça, tomada a partir de uma crítica à jurisprudência formada no sentido da possibilidade do conhecimento de ofício daquelas questões denominadas como de ordem pública pelo Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento de recurso especial. Nesse sentido, pretende-se levantar, paralelamente à crítica, a necessidade de uma revisão dos problemas estruturais que sustentam a crise do sistema recursal e do processo civil brasileiro.Palavras-chave: Tribunais Superiores – Recursos – Questões de Ordem Pública.
Riassunto: Questo saggio è una proposta di riflessione sulla funzione delle Corti Superiori, in particolare lo Tribunale Superiore di Giustizia, preso da una critica della giuirisprudenza verso la possibilità di conoscenza d´ufficio quelle domande definita come l'ordine pubblico dal Tribunale Superiore di Giustizia, quando giudica il riscorso speciale. In questo senso, abbiamo intenzione di sollevare, oltre alle critiche, la necessità di una revisione dei problemi strutturali alla base della crisi del sistema di ricorso e del processo civile brasiliano.Parole-Chiave: Corti Superiori – Ricorsi – Questioni di ordine pubblico
SUMÁRIO: 1 Considerações Iniciais. 2 Uma breve apresentação da tese objeto da crítica. 3 A crítica à tese favorável à possibilidade de o STJ apreciar questões de ordem pública não decididas na decisão recorrida. 3.1 A outra face da crítica: o problema da discricionariedade no conceito de questões de ordem pública e na escolha dos limites de atuação (função) do STJ. 4 A reflexão decorrente da crítica – ou aquilo que não foi objeto de reflexão na tese criticada: a função dos Tribunais Superiores e o papel do STJ. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
1 Considerações IniciaisO presente ensaio tem como ponto de partida a recente divergência, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, acerca da possibilidade de serem analisadas, em sede de recurso especial, questões de ordem pública que não foram objeto de prequestionamento . Contrapõem-se, a respeito do tema, duas teses: uma, no sentido de ser impossível a análise das questões de ordem pública não decididas na decisão recorrida, mesmo quando o recurso tiver sido conhecido por outro fundamento e o Tribunal, ao julgá-lo, venha se deparar com tais questões : e, outra, que pugna pela possibilidade de serem analisadas as matérias de ordem pública que não foram alvo de prequestionamento sempre que vencido o juízo da admissibilidade recursal em decorrência de fundamento diverso, hipótese na qual o Tribunal aplicaria o direito à espécie em conformidade com a súmula 456 do STF e com o artigo 257 do RISTJ .A existência de dois posicionamentos sobre a matéria revela a inexistência de um consenso pelos Ministros integrantes do próprio Superior Tribunal de Justiça acerca do seu papel como Tribunal Superior. Subjacente à discussão posta, está, portanto, a necessidade de uma reflexão crítica relativamente à função dos Tribunais Superiores no Brasil. Afinal, a reposta quanto aos limites da atuação do Superior Tribunal de Justiça, nesse caso em especial, diz muito a respeito daquilo que se pensa sobre a função dos Tribunais Superiores.Tendo como base essa problemática, pretende-se, neste ensaio, defender a inviabilidade da análise, no julgamento do recurso especial, de questões não decididas na decisão recorrida, mesmo quando se estiver diante das chamadas questões de ordem pública, conceito, que, por sua vez, também não está isento de críticas em razão da sua ausência de precisão. Com esse objetivo, em um primeiro momento, será exposta a tese combatida, partindo-se, para tanto, dos seus principais fundamentos doutrinários. Após, esses mesmos fundamentos serão colocados em xeque, estabelecendo-se, ao mesmo tempo, as razões pelas quais o pensamento contestado afigura-se desconforme à matriz constitucional do Superior Tribunal de Justiça. Ao final, serão realizadas algumas considerações críticas acerca do papel dos Tribunais Superiores, de modo a solidificar as bases do posicionamento adotado e propor, também, alguns elementos de reflexão sobre o tema.
2 Uma breve apresentação da tese objeto da críticaA engenhosa tese que sustenta ser possível o Superior Tribunal de Justiça analisar as questões de ordem pública não decididas no acórdão recorrido tem, como ponto de partida, a vetusta súmula 456 do STF, repetida pelo artigo 257 do RISTJ, segundo a qual, uma vez conhecido do recurso, o Tribunal aplicaria o direito à espécie. Dessa forma, caso alguma questão de ordem pública restasse sem apreciação pelo STJ no julgamento do recurso especial, não se estaria aplicando o direito à espécie . A exigência do prequestionamento diria respeito somente à admissibilidade do recurso, de modo que, ultrapassado o juízo de admissibilidade, o Tribunal estaria autorizado a examinar outros fundamentos jurídicos, ainda que não suscitados expressamente pelo recorrente, e, até mesmo, não examinados expressamente na decisão recorrida .Dito de outro modo, o STJ, após verificar a presença dos requisitos de admissibilidade do recurso, primeiro deveria proferir um juízo de cassação, anulando e rescindindo a decisão recorrida, porque ofensiva à lei federal. Em um segundo momento, passaria a julgar novamente a causa, como se fosse um juízo de competência originária ou tribunal de apelação, sendo-lhe permitido decidir de ofício, pela primeira vez, as questões de ordem pública que não foram suscitadas pelo recorrente . Assim, se a questão de ordem pública constituir o único fundamento do recurso especial, mas não for prequestionada, o recurso não será conhecido. Porém, se o recurso for admitido por outro fundamento, a matéria de ordem pública poderá ser analisada, mesmo se não tiver sido levantada no recurso .Corroborando essa tese, outro argumento costuma ser lançado: o de que não seria razoável e proporcional vedar a análise de questões de ordem pública quando conhecido por outro motivo o recurso. Tratar-se-ia, segundo os defensores desse posicionamento, de opção muito mais eficaz, célere e justa , além de consentânea com a lógica do processo e com a ordem jurídica , capaz, também, de evitar a necessidade de novo meio de impugnação .
3 A crítica à tese favorável à possibilidade de o STJ apreciar questões de ordem pública não decididas na decisão recorrida
O discurso, apesar de sedutor, mostra-se inadequado à previsão constitucional relativa ao cabimento do recurso especial e ao papel do Superior Tribunal de Justiça. Assim como a referência à súmula 456 do STF também não convence. Por sinal, é, no mínimo, inusitada a discussão acerca do significado do texto da referida súmula. Além de nenhum dos julgados que deram origem a ela fazerem menção à possibilidade de o STF agir como se estivesse julgando um recurso de apelação, seria possível pensar que o STF e o STJ, ao julgarem os recursos a eles submetidos não aplicariam o direito à espécie? Aplicariam o quê, então? Alguma outra coisa que não fosse o Direito? Por isso, o único sentido plausível para a referida súmula e para o artigo 257 do RISTJ é o de que o STF e o STJ não julgam como se fossem Cortes de Cassação, vale dizer, cassando o acórdão recorrido e determinando que o Tribunal a quo profira novo julgamento. Todavia, esse novo julgamento da causa deve seguir os estritos limites decorrentes da natureza do recurso especial e do recurso extraordinário . A razão está com Barbosa Moreira, para quem, nesses casos, julgar a causa seria julgar a matéria objeto da impugnação .Não fosse isso, em vingando a tese que propugna pelo alargamento da dimensão vertical do efeito devolutivo no âmbito dos Tribunais Superiores (ou, efeito translativo), se estaria tornando muito próximos os recursos especial e extraordinário dos demais recursos, afinal, como lembra Teresa Wambier, também o vício da falta de condições da ação na apelação só pode ser conhecido no tribunal depois de exercido, com resultado positivo, o juízo de admissibilidade . Daí se afirmar que estes 'recursos não abrem o acesso a outra matéria, que não decidida e impugnada, chegar à cognição do STF e do STJ' .É claro que, em se tratando de um tema controvertido, surgirão argumentos em defesa da justiça do caso concreto , da razoabilidade, da defesa da ordem jurídica, etc. Melhor dizendo, surgirão álibis argumentativos suficientemente sedutores para mascarar o arbítrio ou a vontade do intérprete diante da situação concreta. Ocorre que o STJ tem sua função delimitada pela Constituição, e não deve assumir o papel de uma terceira instância, ainda que 'inspirado no encantador pretexto de fazer a justiça do caso concreto' , como adverte Araken de Assis. Ao adotar essa posição, inclusive diante de 'casos chocantes' que deverão ser resolvidos na rescisória , o mencionado doutrinador deixa antever um entendimento firme a respeito do que (deveria) representar a Constituição, mormente para o processo civil, matéria na qual a Constituição costuma servir como capa de sentido para resolver determinados casos, enquanto em outros ela é escantilhada, como se fosse separar Processo Civil e Constituição. Sendo mais claro, o élan vital que imprime significado a uma Constituição é o de que 'ela é feita em momentos de 'sobriedade' política para defender o Estado e a sociedade exatamente destas erupções episódicas de paixões e desejos momentâneos' . Daí que, mesmo naquelas situações em que a limitação imposta à cognição das questões de ordem pública pelo STJ possa parecer injusta, desarrazoada ou desconforme com a lógica processual, é preciso ter presente que tais discursos sedutores postos frente ao caso concreto somente têm seguimento com ranhuras à Constituição, da mesma forma que outros discursos casuístas como o da relativização da coisa julgada.
3.1 A outra face da crítica: o problema da discricionariedade no conceito de questões de ordem pública e na escolha dos limites de atuação (função) do STJ
Outros dois problemas apresentam-se conjuntamente à crítica estabelecida no presente ensaio. E ambos têm o mesmo elemento comum: a discricionariedade atribuída ao Superior Tribunal de Justiça, tanto para definir o que são (e quais são) as questões de ordem pública, quanto para determinar a possibilidade de apreciar, ou de não apreciar, tais questões .Sendo mais claro, na medida em que qualquer uma das teses (a que limita a atuação do STJ ou a que permite a análise de questões não prequestionadas) é considerada válida nos domínios do Tribunal, este fica autorizado a decidir, ou melhor, a escolher, entre analisar ou não analisar determinada questão, conforme cada caso que lhe é apresentado. E pode fazê-lo sem explicitar as razões que o levaram a escolher, em determinada situação, qualquer uma das teses, afinal as duas seriam legítimas dentro do atual quadro da jurisprudência da Corte. Com isso, permite-se que a mesma Turma do STJ decida, em um caso, pela impossibilidade de apreciar a legitimidade ad causam, e, em outro, pela possibilidade de apreciar a questão relativa à legitimidade ad causam. Pior ainda, nos dois casos poderão ser consideradas como devidamente fundamentadas as duas decisões, pois ambas estariam lastreadas em teses legítimas, ainda que o verdadeiro fundamento da escolha (por uma ou por outra tese conforme o caso) não tenha sido explicitado .O mesmo problema está presente no conceito de questões de ordem pública , comumente concebidas, de forma vaga, como regras superiores que formam, por assim dizer, as condições vitais da sociedade e que devem dominar as vontades particulares . O que é uma questão de ordem pública? Quais são os elementos que caracterizam determinada questão como sendo de ordem pública e fazem com que ela seja diferente das outras questões surgidas no curso do processo? É possível falar, no âmbito da técnica processual, de questões que não seja de ordem pública? Toda questão de ordem pública pode ser conhecida de ofício pelo juiz?É certo que existem questões cujo conhecimento de ofício pelo juiz está autorizado por lei, como é o caso da legitimidade 'ad causam', do interesse de agir, da coisa julgada e da litispendência. No entanto, também as questões processuais acerca das quais a legislação nada prevê possibilitando o conhecimento oficioso pelo juiz não deixam de ter caráter público, como se fosse possível contrapor, no que concerne à técnica processual , normas de interesse público e normas de interesse privado , tese já superada pela doutrina .O artificialismo da distinção entre questões de ordem pública e questões privadas tem servido para chancelar um alto grau de discricionariedade ao juiz, permitindo-lhe criar, em cada caso, novas questões de ordem pública e, assim, decidir de ofício questões que a lei não prevê tal possibilidade. Nesse sentido, por exemplo, o STJ já decidiu ser possível o reconhecimento de ofício, pelo Tribunal de Justiça, da imunidade parlamentar do demandado em ação de indenização por danos morais que tinha sido julgada procedente em primeira instância , da falta da prova literal de dívida líquida e certa em ação cautelar de arresto, mesmo em embargos declaratórios com a imposição de reformatio in pejus ao recorrente , e das questões de ordem pública contempladas no Código de Defesa do Consumidor, independentemente de sua natureza, 'pois transcendem o interesse e se sobrepõem à vontade das partes, falam por si mesmas e, por isso, independem de interlocução para serem ouvidas' .Verifica-se, portanto, serem evidentes os riscos decorrentes da ausência de uma postura bem definida a respeito dos limites da atuação do Superior Tribunal de Justiça relativamente ao conhecimento das chamadas questões de ordem pública. Da mesma forma a existência de dois posicionamentos na Corte sobre a matéria possibilita uma total ausência de controle e previsibilidade acerca dos limites de atuação do Superior Tribunal de Justiça, também o conceito de questões de ordem pública afigura-se facilmente manejável, permitindo o conhecimento oficioso de uma série de questões. Talvez fosse melhor utilizar a terminologia 'questões que podem ser conhecidas de ofício', valendo-se, para tanto, do critério legal, ou seja, podem ser conhecidas de ofício as questões que a lei assim permite . O tema, certamente, merece uma análise mais profunda, que não cabe no presente ensaio, sendo suficientes os apontamentos feitos a respeito para denunciar a importância do tema central, que é a divergência existente quanto à atuação do Superior Tribunal de Justiça frente às matérias nominadas como de ordem pública que não foram prequestionadas.
4 A reflexão decorrente da crítica – ou aquilo que não foi objeto de reflexão na tese criticada: a função dos Tribunais Superiores e o papel do STJA divergência a respeito da possibilidade de o Superior Tribunal de Justiça conhecer de ofício determinadas questões que não compõem o objeto do recurso especial deixa entrever o fato de que o próprio Tribunal Superior não tem uma posição firme acerca da sua função. Tal situação é, sem dúvida, um sintoma da crise enfrentada pelo direito processual civil brasileiro, o qual, apesar das inúmeras reformas legislativas, continua intocado no que diz respeito a alguns paradigmas profundamente arraigados em seus alicerces.Não cabe, agora, fazer uma análise histórica acerca dos Tribunais Superiores no Brasil, mas, apenas a título introdutório da problemática atual, mencionar alguns pontos (dentre tantos outros) que parecem merecer destaque. Longe de esgotar as questões históricas, basicamente pretende-se abordar aqueles pontos históricos fulcrais que motivaram a crise dos Tribunais Superiores brasileiros.Ao organizar o Supremo Tribunal Federal como ponto culminante do Poder Judiciário na Constituição de 1891, o constituinte, segundo Alfredo Buzaid, 'tinha diante de si, à livre escolha, três tipos de Côrte Suprema, dois dos quais adotados na Europa e um nos Estados Unidos' . Optou o constituinte pelo modelo norte-americano, por ser o que mais se afeiçoaria com o regime federativo brasileiro, sendo certo que o recurso extraordinário brasileiro deita suas raízes no writ of error americano . Afinal, na medida em que a nação se organizava em diversos Estados-membros, era imprescindível a existência de um mecanismo capaz de uniformizar o entendimento exarado pelas cortes dos Estados acerca da Constituição e das leis emanadas da União . A verdade é que a Federação, no Brasil, formou-se de maneira bem diferente daquelas chamadas Federações perfeitas, próprias ou reais, que decorreram da associação, voluntária, de Estados soberanos preexistentes, como fito de constituir uma União. O caso brasileiro é o de uma Federação imperfeita, baseada em uma descentralização político-administrativa, e não jurídica , de modo que a maioria da legislação vertida nas mais diversas contendas envolve a aplicação da lei federal. O desequilíbrio estrutural congênito do qual padeceu o pacto federativo brasileiro , redundou em uma das causas da chamada 'crise' do Supremo Tribunal Federal, uma vez que, no direito estadunidense, 'por terem resguardado os Estados para si ampla competência legislativa, quer de Direito Material, quer de Direito Processual, há um menor número de conflitos relativos a Direito federal', ao passo que, no Brasil, ocorre, 'praticamente a cada processo, uma 'questão federal', em tese eventualmente merecedora de exame pela mais alta Corte' .A denominada crise do Supremo Tribunal Federal, consubstanciada no 'desequilíbrio entre o número de feitos protocolados e o de julgamento por ele proferidos' , teve o seu surto a partir da década de 40, coincidentemente após a inclusão, na Constituição de 1934, do cabimento de recurso extraordinário quando a decisão fosse contra 'literal disposição de tratado ou lei federal'. Tal dispositivo teria inquietado 'ministros e juristas já nos trabalhos preparatórios da Constituição, pois, no entender de muitos, deveria constituir fundamento de ação rescisória' . De qualquer forma, transcorridas algumas décadas e apontando-se como uma das principais causas da crise o fato de onerar-se 'o Supremo Tribunal com encargos muito superiores às suas forças' , Alfredo Buzaid sugeria, em 1962, a criação de uma Corte de Cassação, paralela ao Supremo Tribunal Federal, o qual deveria agir como verdadeira Corte Constitucional, tal como na Europa, onde haveria essa divisão de tarefas . A proposta seria formulada de forma ainda mais precisa por José Afonso da Silva no ano seguinte, inclusive com a designação de um 'recurso especial' dirigido à nova Corte, que receberia o nome de Tribunal Superior de Justiça, com a finalidade de 'assegurar a unidade e incolumidade do direito objetivo federal, inclusive a uniformidade de sua interpretação' .Com a Constituição de 1988 é criado o Superior Tribunal de Justiça e o recurso especial. Todavia, além de não ter conseguido dar fim à crise do Supremo Tribunal Federal, logo nela também mergulhou, situação que persiste até os dias atuais. E, ao que tudo indica, sem uma profunda revisão do paradigma que alicerça o sistema recursal brasileiro e, principalmente, o papel dos Tribunais Superiores, poucos avanços serão notados nos próximos anos.Conforme Ovídio Baptista da Silva, 'o recurso constitui necessariamente a expressão de uma desconfiança no julgador. Desconfiança no magistrado que decidira, porém confiança nos estratos mais elevados da burocracia judicial' . Trata-se de perspectiva inerente às organizações hierárquicas de poder, as quais costumam constituir-se pela profissionalização dos funcionários, por um ordenamento rigidamente hierárquico e pela doação de uma série de critérios técnicos para a tomada de decisões. Nessas organizações de poder, caudatárias da burocracia clássica, definida como um corpo profissionalizado de funcionários dispostos ao longo de um poder piramidal , o procedimento frente ao primeiro órgão decisional constitui somente um episódio e uma sequência destinada a prosseguir . Vale dizer, a fase de controle é concebida não como uma ocorrência extraordinária, mas como momento sucessivo ao primeiro juízo que se deve esperar no curso normal dos eventos.Mirjan Damaska, ao descrever as hierarquias judiciárias bem organizadas, como a da antiga união soviética e a dos sistemas do Extremo Oriente, afirma que, nessas organizações de poder, o controle dos órgãos superiores não é condicionado a um apelo da parte sucumbente, podendo configurar-se como um componente do dever de ofício das autoridades judiciárias superiores e que as decisões de primeiro grau costumam ser tratadas como meros rascunhos de sentenças, que poderiam ser pronunciados de forma definitiva somente pelos órgãos superiores. Afirma, ainda, que a grande importância atribuída ao controle de qualidade por parte dos superiores em uma organização hierárquica tolhe inevitavelmente a importância da primeira atividade de decisão, sendo bastante comum, nesses casos, a existência de um sistema de apelos regulares como garantia essencial para uma correta e ordenada administração da justiça, chegando-se ao ponto de considerar o recurso como um direito fundamental dos cidadãos, a exemplo da Constituição Iugoslava de 1974 .Nada muito diferente do panorama brasileiro, pois! A colocação do Superior Tribunal de Justiça como uma espécie de terceira instância recursal a partir da análise de determinadas questões que não compõem o objeto do recurso especial é um reflexo claro de centralização e burocracia judiciária própria dos sistemas hierárquicos de poder. É também decorrência direta da 'crença iluminista de que o legislador possa produzir um texto com tal simplicidade e transparência capaz de gerar univocidade de sentido' , de modo que, se o juiz inferior 'errou' na missão de declarar a vontade da lei, resta a esperança de que o erro seja corrigido pelos escalões superiores da hierarquia judicial, 'até que se atinja seu grau mais elevado, contra cujas sentenças não caiba mais recurso' .Não é demasia lembrar que o pressuposto ideológico e filosófico que alicerçou a criação dos Tribunais de Cassação foi o da identificação do direito com a lei e a exclusão de qualquer outra normatividade jurídica no processo de realização do direito, mediante a aplicação lógico-dedutiva de um 'direito todo ele dado, ou por inteiro já previamente constituído' . Posteriormente, o reconhecimento da indispensável mediação normativa da jurisprudência na e para a realização do direito, fez com que as Cortes de Cassação assumissem uma função jurisdicional uma vez que 'a simples consideração da lei em abstracto ou a mera apreciação da legalidade formal, que não atingisse o conteúdo jurisdicionalmente concreto da decisão, não permitia decerto aquele controle' . E com isso, 'os próprios tribunais de cassação se converteram em verdadeiros tribunais de terceira instância' , ainda que com objeto limitado, mantendo, pois, um forte controle, próprio da desconfiança na magistratura, resquício do ancien régime .Esse amplo e irrestrito controle vindo da hierarquia superior, ao invés de ser reduzido, vem se fortalecendo ao longo das modificações ocorridas no Código de Processo Civil, transferindo-se para os Tribunais Superiores, nas palavras de Ovídio Baptista da Silva, 'a modesta parcela de poder que ainda desfrutavam, há alguns anos, os magistrados de primeira instância' . Não se trata, por óbvio, de aquebrantar a importância dos Tribunais Superiores, mas, antes de tudo, reconhecer, na linha do que assevera Castanheira Neves, ser injustificável 'a abertura de uma terceira instância que o fosse exclusivamente, e salvo a sua superioridade hierárquica, em tudo igual às outras' .Para o autor português, os supremos tribunais não devem ser concebidos, nem como instância judicial investida de uma competência prescritiva, nem simplesmente como uma terceira instância. Aos Tribunais Superiores deve competir o objetivo da unidade do direito, e não da jurisprudência . Trata-se de uma unidade da ordem jurídica material-problematicamente constituenda em contraposição a uma unidade formal-sistemática pressuposta, ou seja, uma unidade de normativa ordenação dinâmica e a posteriori, em oposição às unidades normativas a priori, já de identidade, já de redução, já mesmo de totalmente pressuposta fundamentação . Significa dizer que os Tribunais Superiores devem ser um instrumento voltado para o futuro com vistas à unidade do Direito , missão indissociável, conforme afirma André Tunc, de uma adaptação a novas condições sociais e a aspirações contemporâneas , de modo que a própria estabilidade da jurisprudência não haverá de ser um objeto direto, mas, sim, um objeto mediato e sempre provisório 'de uma jurisprudência problematicamente amadurecida na ponderação decisória dos seus respectivos e diversos domínios' .No entanto, é imprescindível que, para cumprir com essa função, o Superior Tribunal de Justiça atue com competência seletiva, circunscrevendo-se ao exame daquelas questões que, pelo grau de relevância, mereçam apreciação , evitando que, de outra forma, acabe desempenhando a função de uma terceira instância ordinária . Tal proposta é preconizada também por Castanheira Neves, para quem os Tribunais Superiores deverão aceitar intervir em ordem à unidade do direito, quando esta, nos seus momentos integrativos e regulativos, constitutivos e reconstitutivos, verdadeiramente o exigir . Com isso não se está a propor um sistema de vinculação estrita, mas que seja apto a conferir um relevo especial jurídico-jurisprudencial às posições dos Tribunais Superiores sem anular a liberdade decisória das outras instâncias decisórias, mediante um regime de liberdade jurisdicional justificada .E, se por um lado, a implantação de um sistema de competência seletiva para o Superior Tribunal de Justiça seja algo desejável, mas que pressupõe reforma política, o panorama aqui traçado não deixa de servir para denunciar o equívoco na concepção que atribui àquela Corte a função de terceira instância recursal. Esse não é o papel do Superior Tribunal de Justiça, tal como se deflui do texto Constitucional. Apostar em uma extensão ainda maior de controle aos Tribunais Superiores é apostar no enfraquecimento das demais instâncias decisórias e na glorificação das impugnações, defeitos essenciais da crise do sistema processual conforme há muito apontou Mauro Cappelletti .
Considerações FinaisO quadro traçado no presente ensaio expõe uma parcela pequena, mas significativa, da crise do processo civil. Efetivamente, a reflexão acerca da função dos Tribunais Superiores constitui elemento importante para descortinar os rumos a serem tomados no sistema recursal brasileiro, caso se queira, realmente, enfrentar os problemas estruturais que permanecem intocados apesar das inúmeras reformas processuais ocorridas na última década. A falta de desenvolvimento do tema está evidenciada na tese alvo da crítica aqui esboçada e, principalmente, na divergência a respeito do papel do próprio STJ. No entanto, somente com enfrentamento de questões mais profundas, que tocam a estrutura do processo e da jurisdição, será possível obter algum sucesso com futuras reformas na legislação processual.
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